Bauman (2001), em sua obra, Comunidade: a busca por segurança no
mundo atual, advoga que as palavras carregam em seu significado sensações.
Comunidade, defende o autor, está impregnada de sentidos prazerosos e, por
isso, produz sensação de segurança, aconchego e solidariedade. Assim,
amalgamada ao sentido de prazer, a concepção utópica ganha relevo.
Destarte, como o próprio Bauman nos aponta, a noção de comunidade
sempre esteve projetada num futuro, haja visto, o paraíso celestial como
promessa bíblica. Todavia, alguns habitantes do globo cansaram de esperar, e
resolveram construir suas comunidades.
Nessa direção, é engendrado no Brasil, no ano de 1973, em São Paulo, o
primeiro modelo do sonho outrora utópico, nomeado como Alphaville. Um bairro
artificial, formado por uma série de condomínios interligados, com um centro
comercial e empresarial, é o modelo da comunidade brasileira, Dunker (2015).
Essa, como nos lembra Dunker, são também denominadas pela alcunha de
condomínio, lugar sereno, sem cercas e com jardins, amiúde, centros
comerciais, playgrounds e, sobretudo, caracterizado, pelo o homogêneo do
espaço e de pessoas, salvo, os não moradores (os empregados, por exemplo).
Esses condomínios supermodernos, concentrados nos grandes centros,
são ermidas como nos ensina Bauman (2004), fisicamente dentro, mas social e
espiritualmente fora da cidade. Cidades como São Paulo estão cercadas de
muros. Barreiras físicas são construídas em torno de casas, prédios, praças e
escolas, mobilizadas por uma política do medo. Essa, como nos sinaliza Zizek
(2014), na esteira da pós-política cujo esfacelamento do embate ideológico, a
partir de então, dá lugar a uma política baseada em uma administração
especializada e socialmente objetiva.
Assim, com a rarefação política, busca-se introduzir a paixão tendo como
via mobilizadora, o medo, em detrimento da dimensão constitutiva do político.
Então, o medo de imigrantes, medo da criminalidade, medo de uma depravação
sexual, medo do estado, medo de um desastre ecológico etc, ganha destaque
na constituição subjetiva contemporânea.
Nesse sentido, Safatle (2016), adverte que o medo é o afeto que nos
mobiliza. O medo movimenta nossas fantasias, nossas crenças dentro da
dinâmica social. Desta forma, a política do medo torna-se um instrumento do
marketing imobiliário, o qual de certa forma superlativa a ameaça ao corpo, a
propriedade, bem como se utiliza do modo de vida liquido, cujos sintomas
nascem na incerteza do futuro, na fragilidade da posição social e, em última
instancia na insegurança existencial. Operando, assim, na falta estrutural do ser
desejante.
A falta estrutural do sujeito realizada pela inscrição do Nome-do-Pai,
operador simbólico do psiquismo, impulsiona o sujeito a buscar objetos na
tentativa de tamponá-la. Assim, os condomínios apresentam-se como objeto
apaziguador do medo na tentativa de eliminar o mal-estar contemporâneo, bem
como, expressa a tentativa de o sujeito buscar uma estrutura sólida, a qual possa
lhe dar as garantias pregadas pelo marketing imobiliário. Para Dunker, quando
o objeto empírico é alocado no lugar da falta estrutural, dissociando crenças e
saberes, mimetizando crenças particulares com leis universais, o condomínio,
torna-se exatamente a estrutura social do fetichismo.
Assim, ao adentrar no condomínio, o que se percebe são ruas e praças
vazias, caracterizando sintomas como tedio, solidão e fazendo emergir reações
hostis. A homogeneização do condomínio motivada pela busca pelo semelhante,
acentua as pequenas diferenças em sujeitos minimamente parecidos e causa
sentimentos de estranhamento e hostilidade, como: insegurança, inveja e
rivalidade. Através do que Freud (1917) nomeou como narcisismo das pequenas
diferenças.
Na esteira do ódio ao outro, os muros têm como meta distanciar os
estrangeiros que fazem emergir no condômino o inquietante (o estranho), o qual
conforme Freud (1917), diz respeito ao oculto, porém familiar recalcado,
incrustado de desamparo, de fantasias e de conteúdos angustiantes rechaçados,
os quais provocam nos condôminos, mormente quando em contato com o
estrangeiro, reações de incerteza do futuro, assim como na incerteza de garantia
da posição social, da propriedade e, sobretudo, por um mal-estar inominável.
Os estrangeiros, são aquela massa de sujeitos excluídos do ideário
neoliberal de consumo e aqueles que não enquadram na ordem social. Em uma
cultura marcada pelo critério de desempenho e padronização dos sujeitos na
busca de homogeneização. Os excluídos, adverte Bauman, formam uma
multidão de lixo humano.
Nesse prisma, a expressão do mal-estar contemporâneo expresso na
violência, na intolerância, em suma, na fragilidade dos laços humanos, não é
somente efeito do devir histórico e cultural, mas também da política do medo e
da lógica do condomínio. Esses últimos não exaurem as causas do mal-estar
contemporâneo daqueles atingidos por essa trama social. Todavia, corroborados
pela mutação histórica e social, são importantes agentes na formação do
supereu, instância psíquica representante moral da cultura, herdeira do
complexo de édipo. Apresentando então, na pós-modernidade, um
afrouxamento ou um cinismo da internalização das leis, tendo uma operação
contrária à da modernidade, onde o supereu apresentava uma formação rígida
com relação a internalização das leis, aos interditos e precarização do gozo. No
entanto, o contemporâneo, é marcado pelo imperativo de consumo, ou melhor,
de gozo e excesso.
Ao lado da formação superegóica, o que talvez ganhe eminência no malestar hodierno, é a noção do inquietante (estranho) e do narcisismo das
pequenas diferenças. Pois, à medida que as relações humanas vão sendo
pauperizadas através de novas tecnologias, de barreiras físicas como
supracitado e, em última instância pela lógica do condomínio e pela política do
medo, a formação do eu é prejudicada pela insuficiência da relação com o outro.
Doravante, os sujeitos se tornam cada vez mais sensíveis e afetados pelo
inquietante (estranho), cuja emersão é manifestada no contato com a alteridade.
Essa relação se torna cada vez mais desconfortável com o aumento da
intolerância e manifestação hostil de sentimentos que são alocados no outro,
quando é tocado pela mínima diferença. Lançando assim, cada vez mais
sintomas e mal-estar no contato intersubjetivo.
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre as fragilidades dos laços humanos. Rio de
Janeiro – Zahar, 2004. 191 pag.
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro –
Zahar. 131 pag.
DUNKER, Christian. Mal-estar, Sofrimento e Sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre
muros. São Paulo: Boitempo, 2015. 413 pag.
FREUD, Sigmund. O Tabu da Virgindade. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. (Original
Publicado em 1917).
FREUD, Sigmund. O inquietante. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Original publicado
em 1919)
VLADIMIR, Safatle. A Lógica do Condomínio. Cpfl – 2016. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=zWnD_FYo1sQ&t=463s.
ZIZEK, Slavoj: Violência. São Paulo: Boitempo, 2014. Pag. 195